quinta-feira, 8 de setembro de 2011

INTERNET E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA EM SOC. DEMOCRÁTICAS

V ENLEPICC
INTERNET E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA EM SOCIEDADES DEMOCRÁTICAS
WILSON GOMES*
O artigo trata do tema da participação política na literatura recente sobre os efeitos políticos da Internet. O seu propósito é examinar a tese segundo a qual a internet constitui um ambiente de comunicação que tenderia a transformar o padrão atual de baixa participação política por parte da esfera civil nas democracias contemporâneas. Examina os argumentos correntes sobre uma reiterada crise de participação civil nos negócios públicos, acompanhando a hipótese, também corrente, de que os meios de comunicação de massa falharam na sua função de incrementá-la. Em seguida, resenha os argumentos que ressaltam as possibilidades e as oportunidades proporcionadas pela internet para resolver o problema do déficit de participação civil nos assuntos políticos, para então, por fim, resenhar os argumentos em contrário, da literatura mais recente, segundo os quais também a internet vem fracassando no seu papel de indutor e promotor de participação política.
Palavras-chave: participação política; internet; comunicação política.
* Doutor em Filosofia, professor titular de Teoria da Comunicação da Universidade Federal da Bahia, pesquisador (CNPq/1) do PPG em Comunicação e Cultura Contemporâneas. wilsonsg@ufba.brTodo tema tem os seus truísmos, uns efetivos, outros presumidos. Nas discussões sobre new media e democracia, por exemplo, presume-se que sejam truísmos as afirmações de que meios e modos da comunicação são fundamentais para a democracia de massa, e de que nas sociedades contemporâneas há baixos níveis de participação civil, portanto, de democracia. Aliás, assumindo-se tais verdades como pressupostos é que se enceta, a partir daí, a discussão - ainda incerta quanto aos resultados, mas já fortemente polarizada (Wilhelm, 2000) - sobre se os novos meios de massa, principalmente a internet, podem ajudar a resolver o déficit democrático da sociedade contemporânea.
A afirmação da baixa participação democrática é, ao fim e ao cabo, um diagnóstico sobre o padrão democrático das sociedades contemporâneas. Não se trata, a rigor, de uma crise da democracia, que, como idéia ou como ideal, jamais esteve em tão alta conta. O que todos vêem como problemático é o sistema de práticas, instituições e valores da política contemporânea à medida que se constata a sua distância de um padrão de democracia considerado ideal.
1. O problema da participação política
Antes de tudo, há de se perguntar, que características uma democracia efetiva deveria ter. Evitando afrontar diretamente neste artigo a questão mais complicada dos modelos de democracia (Held, 1987; Dahlberg, 2001), tomo e desenvolvo a sumarização feita por Bucy e Gregson (2000), que parece dar conta da mais corrente compreensão do tema. Numa democracia capaz de satisfazer aos requisitos básicos de participação democrática deveriam estar presentes, num nível socialmente relevante:
a) um volume adequado de conhecimento político estrutural e circunstancial, um estoque apropriado de informações não-distorcidas e relevantes, suficientes para habilitar o cidadão a níveis adequados de compreensão de questões, argumentos, posições e matérias relativas aos negócios públicos e ao jogo político;
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b) possibilidade, dada aos cidadãos, de acesso a debates públicos já começados e possibilidade de iniciar novos debates desta natureza, onde a cidadania deveria exercitar a oportunidade de envolver-se em contraposições argumentativas, de desenvolver os seus próprios argumentos, de envolver-se em procedimentos deliberativos no interior dos quais pode formar a própria opinião e decisão políticas;
c) meios e oportunidades de participação em instituições democráticas ou em grupos de pressão - mediante ações como voto, afiliação, comparecimento a eventos políticos ou através de outras atividades políticas nacionais ou locais;
d) habilitação para e oportunidades eficazes de comunicação da esfera civil com os seus representantes (em nível local, nacional ou internacional) e para deles cobrar explicações e prestação de conta.
É à luz destes requisitos, ou de outros a estes assemelhados, que estaria em crise o modelo de democracia representativa, ou de democracia liberal, os seus procedimentos de condução dos negócios públicos ou de tomada de decisão e a sua vinculação à vontade e opinião públicas. A um tempo resultado e sintoma de tal crise seriam, numa lista aleatória e com imbricações, a apatia dos eleitores, a ausência de efetividade (disempowerment) da cidadania no que tange aos negócios públicos, o desinteresse público na vida política, uma informação política distorcida ou excessivamente dependente dos meios de massa, o baixo capital político da esfera civil, a desconexão entre sociedade política e esfera civil, a ausência do mais elementar sentido de soberania popular e a desconfiança generalizada com respeito à sociedade política (Cobb e Elder, 1983; Bucy e Gregson, 2000, Blumler e Gurevich, 1995; Verba et al., 1995; Schattan e Nobre, 2004.).
Em suma, a política contemporânea aparece, em grande parte da literatura que trata da relação entre os novos meios de comunicação e a política, como incapaz de satisfazer os requisitos da democracia em seu sentido mais próprio. E o fenômeno mais comumente identificado como em estreita relação ao déficit democrático contemporâneo é, em geral, designado pelo verbete “participação política”. O sujeito dessa participação política, cuja crise é aqui diagnosticada, é, evidentemente, o público, a cidadania, a esfera civil. Mas quando se pergunta sobre o locus de tal participação as respostas
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podem variar, indicando, também numa lista aleatória, a vida pública, as eleições, a política institucional, os negócios públicos, a decisão política. A variação na resposta indica, em geral, os modelos de democracia de cada um: há desde modelos mais institucionais de democracia aos quais bastaria, em princípio, a indicação de um déficit de participação civil na genérica “vida pública”, até modelos de democracia forte (participativa ou direta) que vêem uma crise justamente na baixa efetividade política do cidadão, no baixo nível de influência civil na esfera de decisão política. Ficando nos dois extremos do exemplo, a uns bastaria que a população votasse e fosse politicamente bem informada enquanto a outros seria necessário, ademais, que o cidadão tivesse oportunidades de deliberação no que se refere às políticas adotadas pelo Estado.
Mas se falta participação política é porque faltam também outros requisitos da vida democrática. Algumas dessas faltas são relacionadas à cultura política, sendo «cultura» entendida aqui como mentalidades, valores, convicções e representações compartilhadas. Faltaria à cultura política dos cidadãos nas democracias contemporâneas um elementar sentido de efetividade das práticas políticas civis. Parece ausente a esta mentalidade a sensação de que há uma conexão de causa e efeito entre a ação do cidadão e o modo como as coisas referentes ao Estado se decidem. Este sentimento se reforça pela impressão de que, com efeito, as indústrias da notícia, do lobby e da consultoria política têm muito maior eficácia junto à sociedade política e ao Estado de que a esfera civil. Haveria como que uma marginalização do papel dos cidadãos.
A ausência de efetividade se experimenta, no final das contas, como desconexão entre a esfera onde se toma a decisão política e onde se controla o Estado, de um lado, e a esfera da cidadania, do outro. Sucessivas ondas de profissionalização da função política – primeiro, profissionalização da classe dos representantes e tomadores de decisão, depois, dos agentes envolvidos nas funções de pressão externa à sociedade política (lobistas, jornalistas e consultores), por fim, da própria sociedade civil (a profissionalização das ONGs sendo apenas um exemplo) – geraram a sensação de ineficácia da ação política do cidadão comum e teriam contribuído para arruinar as condições da participação cívica.
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A esta convicção deve se somar, ademais, a formação de uma péssima imagem pública da sociedade política, entendida como orientada exclusivamente por linhas de força imanentes ao jogo político (acúmulo de capital político para o próprio grupo ou partido, contraposição entre governo e oposição, etc.) ou por interesses não-públicos oriundos da esfera econômica ou das indústrias especializadas em produção da “opinião pública”.
Ainda no horizonte da cultura política, são indicados freqüentemente como déficits fundamentais uma generalizada falta de conhecimento e de interesse políticos. Primeiro, faltaria à esfera civil o conhecimento ou uma visão acurada da vida pública, um repertório suficientemente provido de informações sobre processos e conteúdos que orientam o funcionamento da sociedade política, bem como sobre o estado das coisas e das circunstâncias concretas que constituem as conjunturas políticas. Segundo, a literatura contemporânea sobre o tema insiste fortemente no baixo nível de interesse político por parte do público em geral. Talvez em virtude de a imagem pública predominante do campo político o representar como infestado por inconfessáveis e inegáveis interesses não-públicos, talvez em virtude do sentimento dominante de parca efetividade da ação política do cidadão comum, o fato é que um nível relevante de interesse político é considerado, na literatura corrente sobre o tema, posse específica apenas de parcela muito pequena da população.
Por fim, há faltas diretamente relacionadas aos meios, modos e oportunidades de participação civil na vida política. Há, antes de tudo, a questão dos mecanismos de participação política, considerados fundamentais para uma democracia onde a esfera civil tenha uma presença forte (Barber, 1984; Conway, 2000); mecanismos que são uma fonte de preocupação “em parte porque são vistos como formas de manter um acesso aberto ao sistema político” (Bucy e Gregson, 2000). Reduzida principalmente a plebiscitos com “cardápio restrito” (ou seja, com opções já pré-estabelecidas pelo campo político), a movimentos sociais “profissionalizados” e a esporádicas manifestações públicas, as oportunidades que o domínio civil teria de fazer-se valer na esfera da decisão política são poucas, controladas pelo gatekeeping do Estado ou do jornalismo e produzem resultados que não obrigam nem comprometem a classe política.
Nos modelos de democracia deliberativa, ademais, a questão não diz respeito simplesmente a meios e oportunidades, mas à qualidade e a requisitos referentes aos
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modos de participação civil disponíveis. O fulcro do problema seria a questão da argumentação pública, desde a troca de razões em público sobre questões de concernência comum (Maia, 2002) até o escrutínio público das deliberações políticas do Estado. Nesta perspectiva, são hoje raras e pouco efetivas as oportunidades de participação civil mediante discussão pública dos negócios públicos. Ainda mais, se o requisito for de uma discussão pública que satisfaça os requisitos de autenticidade e de efetividade. “Autenticidade” no sentido de imunidade a coações externas à discussão, lealdade no debate, racionalidade ou, pelo menos, razoabilidade argumentativa. “Efetividade” diz respeito à possibilidade de produção de efeitos na esfera da decisão política. Em outras palavras, faltaria então um volume qualificado de arenas públicas autênticas ou uma densidade socialmente importante de oportunidades de deliberação pública.
Do conjunto da crítica, pode-se, por outro lado, inferir as condições requeridas para a participação política. E estas são, em geral, de tríplice natureza: cognitiva, cultural e instrumental. São condições cognitivas, naturalmente, aquelas relacionadas a informação e conhecimento, tanto aquelas que nos instruem sobre a natureza do Estado e da sociedade política, seus instrumentos, instituições e processos, como aquelas que nos aparelham para formar uma opinião suficientemente qualificada sobre as circunstâncias do jogo político, sobre as posições em disputa, sobre o estado do campo político.
Há também as condições culturais, relacionadas à cultura política, entendida a cultura ainda no sentido de significados e valores socialmente compartilhados. Neste âmbito, lidamos com concepções disseminadas, imagens públicas dominantes, impressões e opiniões sobre matérias, posições e sujeitos e tudo o mais do domínio das representações, dos valores e do imaginário. Pois bem, parece bastante comum a idéia de que convicções e representações podem ser importantes para promover ou desestimular a participação civil na política. Assim, se o público tem a impressão de que a sua intervenção política pode fazer alguma diferença para conduzir nesta ou naquela direção a decisão acerca dos negócios públicos, então possivelmente se sentirá compelido a produzir intervenções mais constantes e mais qualificadas. Na mesma linha estaria a convicção de que a esfera civil é, ao fim e ao cabo, aquela que exerce a soberania política e que a ela estaria associada essencialmente, como mandatária de uma
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mandante civil, a sociedade política. Por fim, acredita-se, uma imagem adequada dos representantes, do Estado e das suas demais instituições, entendidos como coisa e serviço públicos, seria decisiva para uma cultura cívica de maior participação.
Por fim, há as condições de natureza instrumental, aquelas referidas aos meios e modos destinados a assegurar as oportunidades de participação política. Convicções e informação são ainda pouco se não apoiadas em oportunidades. Mesmo porque tanto umas quanto outra recebem considerável reforço positivo quando confrontadas com a experiência concreta de efetividade política da esfera civil ou com um conjunto de experimentos e iniciativas que obtêm êxito na extensão das oportunidades de participação democrática.
2. Das razões do déficit de participação política
Constatado o morbo, buscam-se-lhe as causas. O que estaria entre a esfera civil e uma participação política com intensidade suficiente para satisfazer a um padrão adequado de democracia? No fundo, trata-se aqui da pergunta sobre o porquê de as nossas sociedades serem em geral deficitárias no que diz respeito aos requisitos adequados para a participação civil.
A busca de causas de fenômenos sociais complexos pode resultar, como se sabe, numa agonia reflexiva perpétua, pois o jogo conceitual de encaixes, engates e conexões, mediante o qual se estabelecem as relações de causalidade, pode facilmente se tornar descontrolado. O discurso que nós examinamos, todavia, não nos leva tão longe assim. Num horizonte mais amplo, remete-se o fenômeno a causas genéricas que, por sua vez, constituem alguns dos truísmos da ciência e da filosofia políticas contemporâneas: declínio da vida cívica em geral, crise da democracia representativa em particular. Um das plataformas argumentativas mais freqüentadas desse discurso consiste, todavia, numa vinculação unidirecional da baixa participação, da desinformação e do desinteresse políticos da esfera civil à comunicação de massa.
E aqui o discurso costuma ter duas dimensões complementares. A primeira destas costuma insistir no fracasso dos meios de comunicação de massa - e fracasso
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freqüentemente atribuído não à sua natureza, mas às circunstâncias atuais do seu uso - em cumprir as suas promessas como instrumentos privilegiados para a extensão das possibilidades de participação democrática. É um discurso de frustração. A segunda dimensão tende a impingir aos meios de massa responsabilidades pelo baixo padrão de democracia participativa nas sociedades contemporâneas, não apenas, portanto, pelo que deixa de fazer, mas, sobretudo, porque o que faz resulta daninho e “hostil à causa da democracia, servindo na verdade para a solapar” (Barnett, 1997). Trata-se de um discurso de imputação de culpa.
Os dois discursos freqüentemente são misturados, como acontece em artigo de Barnet (1997, p. 203) que aponta conseqüências deprimentes da tradicional comunicação de massa sobre as condições fundamentais para a participação política: a) O entendimento básico das posições em competição no interior do jogo político seria prejudicado pelo material distorcido produzido pelos meios de comunicação de massa, embora também pela informação oferecida pelos políticos, sumária e insuficiente; b) “O debate racional é comprometido em virtude das matérias sensacionalistas e com um enfoque personalista que permeiam a esfera pública mediante os meios de massa”; c) “A participação ou é desencorajada ou tem diminuída a sua importância pelo desprezo crescente pelos representantes políticos, o que deve ser atribuído, em boa parte pelo menos, ao tratamento desdenhoso (e freqüentemente ridículo) a que os submetem os meios de massa”; d) “O conceito de representação perde legitimidade à medida que os representantes eleitos são apresentados como desconectados do interesse do seu eleitorado”.
Na já vasta literatura devotada a apontar o déficit democrático dos meios de comunicação de massa, identificam-se razões circunstanciais e razões estruturais para tanto. São circunstanciais, digamos assim, aquelas relacionadas ao estado atual de funcionamento das indústrias da informação e da cultura de massa, aos princípios que atualmente orientam os campos sociais que se formaram no seu interior e à forma contemporânea da sua relação com os mercados consumidores de notícias e entretenimento. Razões estruturais estão em relação à natureza mesma dos meios de massa, não obstante a diversidade dentre eles, tendo particular ênfase o fato de produzirem fluxos de informação com vetor unidirecional - a famigerada mão-única da comunicação de massa.
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De todo modo, da configuração dos meios de comunicação emergiriam, segundo os críticos, algumas das suas características que atingem diretamente as condições cognitivas e culturais da participação política. A forte concorrência interna entre as indústrias de informação e, neste contexto, o imperativo de atendimento às necessidades do mercado de notícias e entretenimento, levaram a comunicação de massa a assumir características que, numa lista aleatória, vão do sensacionalismo à simplificação das questões e informações política, da seleção e ordenação das matérias políticas segundo interesses de competição e consumo a distorções, voluntárias ou involuntárias, em virtude de a pauta política estar orientada pelos imperativos de venda. O resultado seria um baixo teor de informação política e um nível ainda menor de informação política qualificada, a que se contrapõe um volume considerável de representações que desqualificam sujeitos, procedimentos e princípios do campo político. Com isso, o campo político se aparelha para tentar dobrar o fluxo da comunicação política aos seus interesses, com alto padrão de profissionalização no gerenciamento da informação e com o desenvolvimento de ferramentas e habilitações agilmente manejadas com os quais busca administrar não apenas o que exibir e o que proteger da esfera de visibilidade mediática, mas também busca manipular ou, em geral, ter supremacia, sobre os agentes da indústria da notícia, no controle da informação política circulante.
Na tensão entre os dois campos, então, seria gerada uma espiral que conduziria a níveis cada vez mais baixos de participação política. O jornalismo, na fase da indústria da informação, não teria mais a cidadania como sua referência básica, orientando-se por princípios internos ao campo do jornalismo ou por circunstâncias industriais de sobrevivência e lucro num mercado competitivo. Por sua vez, a esfera civil tenderia a não conferir credibilidade ao jornalismo, outrora auto-designado cão de guarda do interesse público, e passaria a desconfiar da relevância e da veracidade da informação política disponível. Assim, como historicamente desconfia de que a informação produzida pela esfera política está, antes, voltada para a sua manipulação .
3. O que a internet pode fazer pela participação política?
O passo seguinte neste processo consiste na entrada em cena dos novos meios de comunicação, particularmente da internet. Deles se diz particularmente que algumas das
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suas características estruturais e circunstanciais parecem adequadas para melhorar a qualidade democrática das sociedades contemporâneas, ou porque não são acometidas pelos mesmos déficits anti-democráticos apontados nos meios anteriores ou sobretudo porque trazem consigo muitas vantagens suplementares para o incremento da participação democrática. Da perspectiva de uma revisão de literatura, é pelo menos digno de menção o fato de que o grosso da publicação que mais fortemente denunciava a crise da comunicação política, no final dos anos 80 e primeira metade dos 90, coincide com a fase de maior encantamento com o advento dos novos meios de massa; advento saudado como o renascimento das possibilidades democráticas.
Neste momento não nos encontramos mais na fase entusiasmada dos estudos sobre os impactos sociais e políticos da internet, que foi predominante até parte da segunda metade dos anos 90. E começamos a ponderar com mais equilíbrio os argumentos crescentemente anti-utópicos, quando não sombrios e persecutórios, típicos da fase que se seguiu. É um bom momento, então, para uma avaliação mais ponderada das promessas e realizações da internet para a democracia.
Antes de tudo não há como negar que o advento do formato Web da internet, no início dos anos 90, trouxe consigo enormes expectativas no que respeita à renovação das possibilidades de participação democrática. Os exageros da retórica da revolução tecnológica são por demais conhecidos para que mereçam maiores comentários. De todo modo, havia nos planos teórico e prático a sincera esperança de uma renovação, induzida pela internet, da esfera pública e da democracia participativa. Praticamente sem exceção, quase todas as formas de ação política por parte da esfera civil podiam agora ser realizadas mediante a internet, do contato e pressão sobre os representantes eleitos até a formação da opinião pública, do engajamento e participação em discussões sobre os negócios públicos até a afiliação a partidos ou movimentos da sociedade civil, da manifestação à mobilização, da interação com candidatos até a doação para fundos partidários ou de organizações civis, da intervenção em fóruns eletrônicos sobre matéria da deliberação da sociedade política até a intervenção em plebiscitos on-line.
O julgamento do alcance, sentido e, sobretudo, da forma que esta democracia digital assumia, como era de se esperar, não era preciso nem uniforme. A esse respeito, diz com muita propriedade H. Buchstein (1997, p. 248),
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O que, de fato, a internet significa para a democracia, o que, exatamente, computer democracy quer dizer é controverso e pouco claro. Enquanto alguns vêem a internet como uma ferramenta de coleta de informações, outros destacam o seu potencial deliberativo. Outros enfatizam o seu papel no processo de formação da vontade política. Outros ainda a querem empregar como uma ferramenta para a produção da decisão política. (...) Assim, alguns vêem a Net como complementar à existente democracia representativa, enquanto outros defendem mais radicalmente que os meios eletrônicos hão de superar muitos dos problemas de escala que fizeram da democracia direta um ideal impraticável. Para eles, a esperança é que os town meetings eletrônicos e a democracia de apertar botões venham finalmente substituir as velhas instituições da democracia representativa.
Também a esfera política podia, enfim, comunicar-se diretamente com a esfera civil, dispensando o atravessador, representado pelo campo do jornalismo. Com isso, informação política poderia enfim chegar ao público diretamente de um fornecedor que era ao mesmo tempo um agente do campo político. As ciberfacilidades (Choucri, 2000) da produção de informação a um baixo custo, somadas a um igualmente baixo custo de uma distribuição que, porém, detinha grande potencialidade de atingir um público extenso, foram aproveitados antes de tudo pelos candidatos, depois pelas instituições e agentes do Estado e dos seus poderes.
Na literatura sobre o impacto da internet sobre a extensão das possibilidades de participação política, dois temas se destacam pela sua reiteração. Primeiro, insiste-se no revigoramento da esfera da discussão pública como efeito direto da entrada em cena de um novo meio-ambiente de comunicação política. Segundo, destaca-se a capacidade da internet, em particular, e dos novos meios, em geral, de superar o déficit democrático dos tradicionais meios de comunicação de massa.
No primeiro caso, trata-se dos novos arranjos e possibilidades da esfera pública via internet. Naturalmente, também aqui há os entusiasmados segundo os quais a internet reúne as condições mais qualificadas para uma discussão pública extensa e efetiva, mas há também os céticos para os quais os ambientes de comunicação on-line estão longe de atender aos padrões de uma esfera de debate público correspondente a uma democracia forte. Na perspectiva mais otimista, a que nos interessa a este ponto do argumento, a nova tecnologia parece satisfazer a
“(...) todos os requisitos básicos da teoria normativa de Habermas sobre a esfera pública democrática: é um modo universal, anti-hierárquico, complexo e exigente. Porque oferece acesso universal, comunicação não-coercitiva, liberdade de expressão, agenda irrestrita,
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participação fora das tradicionais instituições políticas e porque gera opinião pública mediante processos de discussão, a internet parece a mais ideal situação de comunicação” (Buchstein, 1997, p. 251).
Ou como diz Steven Barnett, a internet representa o ambiente de comunicação que atualmente mais corresponde ao requisito de “uma zona neutra onde o acesso a informação relevante que afeta o bem público é amplamente disponível, onde a discussão é imune à dominação do Estado e onde todos os participantes do debate público fazem isso em bases igualitárias” (Curran, 1991; Barnett, 1997, p. 207).
Isso porque não apenas há muitas e mui variadas ferramentas para a discussão pública on-line, mas também porque temos um meio com grande capacidade de “conectar indivíduos em redes que tornarão possíveis verdadeiras discussões e debates participativos em grandes distâncias” (Barber, 1984, p. 274). Além do mais, uma esfera pública on-line dispensaria uma série de dificuldades que estão sempre a rondar as discussões off-line: há as superações das injunções, filtros e controles interpostos em geral por parte de instâncias que se situam fora da situação de debate, da disparidade inicial nas discussões promovidas pelas diferenças de valor relativo de cada um na sociedade (reduzida em virtude da possibilidade do anonimato, por ex.), das limitações de espaço (obrigação de contigüidade) e tempo (obrigação de contemporaneidade) que afetam as discussões off-line, etc.
É claro que a questão técnica sobre como estabelecer e reforçar iniciativas destinadas a incrementar a discussão pública on-line ainda está em aberto, a depender da compreensão da internet - se como espaço autônomo da sociedade civil, de onde deveriam partir as iniciativas, ou se se trata de um domínio sob o cuidado dos Estados, que então deveriam promover instrumentos de debate. Na mesma linha, da compreensão espacial da internet depende a responsabilidade sobre as iniciativas: se a entendemos como uma dimensão sem fronteiras ou se a compreendemos como uma malha que inclui o local, o nacional ou o internacional. Assim, para alguns, governos e sociedade civil locais, nacionais e internacionais deveriam ter a responsabilidade de promover as iniciativas instrumentais para o debate, para outros, “a internet mesma cria comunidades de notícias e leva a situações ideais de comunicação entre sujeitos fisicamente remotos,
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mas virtualmente conectados, por meio disso configurando condições ideais para o surgimento de uma nova esfera pública” (Jensen, 2003, p. 350).
O segundo tema é aquele da superação do viés não-democrático e, no limite, anti- democrático, dos meios de comunicação mais antigos. Tanto da perspectiva do campo político quanto daquela da esfera civil. A sociedade política ganha à medida que:
Primeiro, o comunicador tem pleno controle sobre a mensagem. Normalmente ele não é censurado ou filtrado por outros, isto é, a mensagem que é enviada ao destinatário supera o processo de edição jornalística. Segundo, a internet é potencialmente interativa, isto é, torna-se possível um diálogo de mão dupla entre quem envia e quem recebe. Terceiro, o novo meio provê àquele que envia um recurso relativamente barato para transmitir grandes volumes de informação. Finalmente, a técnica sofisticada da comunicação via Web dá ao comunicador uma ampla gama de possibilidades donde escolher a forma da comunicação (texto, imagens, som e vídeo) considerada mais apropriada para uma mensagem particular. Em conclusão, a Web provê os agentes políticos com a oportunidade pela qual ansiava, isto é, a de ter controle total sobre a produção da mensagem e comunicar diretamente com os potenciais eleitores sem ter os meios de massa filtrando-lhe a informação (Carlson e Djupsund, 2001, p. 69).
A primeira conseqüência disto está relacionada ao fato de que assim se torna acessível à esfera civil uma visão mais direta da sociedade política e das suas mensagens, dispensando-se, de algum modo, um sistema de intermediação considerado orquestrado, profissionalizado e que tenderia a tornar o público meramente apreciador do jogo político. Ademais, o enorme sistema de informação política - proveniente do campo político, da própria esfera civil e até mesmo da indústria da notícia – disponíveis nos ilimitados repositórios Web permitiria ao cidadão uma avaliação mais acurada da vida política e da esfera pública. A informação política nas redes de computadores é mais variada do que a informação industrial, pois contém não apenas o registro da atualidade jornalística selecionada e editada pelo campo do jornalismo, mas também toda a sorte de registro de fatos e atos políticos do passado. Ademais, esta informação há de ser mais integral e mais rica, pois em princípio o sistema de informação Web configura uma gigantesca e completa enciclopédia política e cultural, onde se tem desde a atualidade jornalística até o resultado da investigação científica. Além disso, a informação política em rede está disponível a um acesso mais rápido, mais barato e mais cômodo do que a informação política industrial. Por fim, a internet inclui e supera a informação industrial, permitindo, ademais, acesso a informações que os meios industriais de notícias não conseguem, não querem ou não podem divulgar.
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Assegurados os dois temas-chave, a literatura sobre internet e participação política prossegue através de grandes listas das vantagens democráticas da internet. Sem pretender, com isso, uma síntese das sínteses, mas apenas produzir um sumário do debate, identifico em seguida sete blocos temáticos onde tais vantagens são apresentadas e discutidas.
I. Superação dos limites de tempo e espaço para a participação política. Os novos meios de comunicação têm o potencial inegável de remover os obstáculos de tempo e espaço para a participação política. “Potencialmente”, dizem os defensores desta posição, “todo indivíduo pode se comunicar com qualquer outro indivíduo, não apenas da cidade, da região ou do estado, mas ultimamente de qualquer lugar do mundo. Com os obstáculos de tempo e espaço eliminados, um diálogo on-line genuíno é possível entre qualquer número de indivíduos que desejem trocar idéias” (Barnett, 1997, p. 194). Não só, esta troca de idéias - que off-line pode se dar apenas em tempo real, e é limitada à obrigação de contemporaneidade entre os que discutem, além de ser dotada de restrições de conteúdo e número – admite a não-contemporaneidade, inclui qualquer volume de pessoas e quaisquer lugares. E a troca de idéias é apenas um exemplo de participação política, de forma que o que dela aqui se diz se poderia igualmente dizer da disseminação de informações políticas, da cobrança exercida sobre os representantes eleitos, da contribuição para a produção de leis, de eventuais ou possíveis participações em plebiscitos ou eleições, etc.
II. Extensão e qualidade do estoque de informações on-line. Das informações políticas fundamentais para a formação da posição política do cidadão já falamos na contraposição acima entre novos e velhos meios de massa. Ademais, temos a informação instrumental necessária para que a cidadania usufrua dos serviços do Estado, possa exercer cobrança e pressão sobre governos e parlamentos, tenha controle cognitivo sobre o estado dos negócios públicos. De forma que, no que tange ao aumento de informação política e conhecimento público das matérias e questões políticas, talvez jamais a cidadania tenha estado tão bem fornida de insumos (cf. Gimmler, 2001, p. 32). Barnett vai mais além na sua resenha das características da informação política on-line.
Todo debate privado ou público sobre tendências econômicas, desemprego, o estado dos serviços de saúde ou sobre a melhoria nas escolas pode ser imediatamente
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informado com riqueza de dados factuais e estatísticos. Pode ser posta on-line informação de departamentos governamentais, escritórios de atendimento ao público, bibliotecas, câmaras ou qualquer outra instituição pública. Todo documento que é parte de procedimentos legislativos normais ou processos de consulta – livros verdes, livro brancos, submissões de partes interessadas, argumentos de indivíduos privados – tudo pode ser disponível instantaneamente. Não há necessidade de qualquer desculpa para um debate conduzido em ignorância (Barnett 1997, p. 205).
III. Comodidade, conforto, conveniência e custo. A idéia de um engajamento estóico e de uma equivalência entre ação política, martírio e sacrifício não poderia parecer mais distante dos imaginários dos cidadãos das democracias modernas. A dispensa do deslocamento espacial, do hiper-engajamento, da submissão às condições hostis, desconfortáveis e cansativas das assembléias presenciais, a possibilidade de intervir desde o conforto da própria estação de trabalho, no escritório ou em casa, a conveniência de fazer as coisas no próprio ritmo e segundo as próprias disponibilidades, o fato de se poder prescindir dos requisitos formais e rituais das instituições, ou da convivência forçada com estranhos, tudo isso depõe em favor de uma participação mais fácil e mais conveniente, além de mais barata, feita sob medida para a sociabilidade numa cultura hedonista, individualista e flexível. Um modo mais do que adequado para uma esfera civil que não mais se pensa prioritariamente como sociedade civil organizada, mas como uma nebulosa de interesses difusos e de laços esporádicos e mutáveis.
IV. Facilidade e extensão de acesso. Acessibilidade é uma espécie de palavra mágica nesta literatura. Supõe, por contrariedade, a superação de uma situação de segredo, de reserva ou de indisponibilidade - fieira semântica que serve para a referência comum a algumas das maiores ameaças a qualquer regime democrático e que, ademais, aponta na direção das temíveis idéias de governos invisíveis, decisão a portas fechadas e tirania. Por isso se insiste sobremaneira no fato de a internet constituir uma oportunidade, possivelmente inalcançável por outros meios, de disponibilidade, abertura e transparência. Em primeiro lugar, trata-se do acesso à res publica, ao Estado naquilo que nele deve estar sob o controle cognitivo direto do público: atos, procedimentos, registros, circunstâncias, processos legislativos e administrativos etc. Em segundo lugar, acesso a informação política de toda a natureza, em todos os seus formatos e de diversas proveniências.
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V. Sem filtros nem controles. Faz parte do charme libertário da internet a reiteração de que nela se verifica, como em nenhum outro médio, um “livre fluxo de informação”. Acredita-se mesmo que, “em contraste com o autoritarismo, não há censura na net, nem política nem criminal nem moral” (Buchstein, 1997, p. 252). Os mais corajosos chegaram mesmo a levantar, nos anos mais entusiasmados, a tese de que a rede, em virtude da sua descentralização e do seu espraiamento transnacional, não só não deveria como não poderia ser controlada por corporações ou por governos nacionais e locais. Este é provavelmente o âmbito da literatura sobre internet em que as perspectivas do libertarianismo mais prosperaram. Imune ao controle de conteúdo e de provimento, a rede seria uma zona protegida onde poderiam prosperar as liberdades básicas de expressão e opinião.
VI. Interatividade e interação. Trata-se de argumento central na afirmação do papel dos novos meios de massa no incremento da participação política: a estrutura e os dispositivos mais comuns da internet, particularmente a Web e o correio eletrônico, fazem com que ela forneça eficientes canais perfeitamente adaptados para fluxos de comunicação e informação em mão dupla entre cidadãos e sociedade política. Canais que, em princípio, “mantêm os cidadãos informados sobre o que estão fazendo aqueles que exercem funções no Estado e mantêm os que têm funções no Estado informados sobre o que os cidadãos querem” (Milbrath, 1965, p. 144).
O conceito de interatividade se torna peça-chave da argumentação a respeito da qualidade democrática de uma sociedade. Se a idéia de soberania popular sustenta uma dada forma de governo, esta idéia há de se materializar em meios e modos pelos quais o mandante político, o povo, faz-se valer na esfera restrita da produção da decisão política, ocupada pelos representantes ou mandatários. Se os fluxos de informação provêm unilateralmente do centro da esfera da decisão política, orientando-se vetorialmente em direção ao público entendido apenas como consumidor de informação e, esporadicamente, eleitorado, falta a esta democracia qualquer sentido de soberania popular que supere o mero e episódico exercício eleitoral. Neste sentido, uma estrutura multilateral, dotada de fluxos multidirecionais de informação e comunicação, é sintoma de uma estrutura política onde se reconhece que a esfera civil tem algo a dizer e pode
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influenciar diretamente a decisão política, de uma estrutura onde governos e legislativos são sensíveis à vontade e à opinião da cidadania.
A noção de interatividade política ancorada na internet se refere a uma comunicação contínua e de iniciativa recíproca entre esfera civil e agentes políticos, uma comunicação que deve servir para um recíproco feedback entre cidadania e sociedade política (Hacker, 1996). Ademais, há, naturalmente, que se admitir um padrão de interatividade horizontal, i. e. dos cidadãos entre si, que finda por coincidir com a já descrita idéia de discussão pública política. Este tipo de interatividade horizontal, quando atinge um fluxo demograficamente importante de comunicação política, é capaz, por sua vez, de produzir enorme efeito sobre os outros campos e sistemas sociais – inclusive sobre a política institucional.
Quando (e se) efetiva, a arquitetura de comunicação em mão dupla é instrumento formidável para quebrar a bruxaria que mantém o público numa condição de passividade no processo político. A interação política é, neste sentido, uma forma de incrementar o poder simbólico e material do público, como eleitor mas também como sujeito constante de convicções, posições e vontade a respeito dos negócios públicos. Além disso, se a interação é capaz, pelo menos em princípio, de levar os agentes políticos a alterarem as suas posições políticas para melhor ajustá-las à disposição do público, é também, por conseqüência, capaz de produzir um efeito igualmente importante na cultura política, pois contribui ao mesmo tempo para recompor a sensação de efetividade política da esfera civil e para produzir o sentimento de que os agentes políticos devem responder à cidadania pelas suas decisões e pelas suas ações referentes aos negócios de interesse público. Leva, portanto, à formação de um cidadão mais cioso da sua força política e a uma classe política mais ciente das suas obrigações democráticas de prestação pública de contas.
Bem empregada pelo campo político, esta arquitetura de comunicação em mão dupla dá ao agente político um “barômetro da opinião pública, com a sua capacidade de oferecer reação a eventos e decisões em tempo real” (Bucy e Gregson, 2000, p. 369). Adequadamente empregada pela esfera civil, esta mesma arquitetura pode incrementar uma democracia eletrônica qualificada, pois permite uma expansão potencialmente ilimitada das vozes que podem vir a ser ouvidas na esfera política, reforça o sentido de
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responsabilidade do sistema político, revigora a esfera pública e os fluxos horizontais de comunicação entre cidadãos, revigora o sentido de conexão entre cidadania e sociedade política. Como diz Rachel Gibson (2001, p. 563):
Se o requisito para melhorar a vida democrática é a injeção de mais deliberação de massa, então, certamente, este novo meio com as suas oportunidades de debate em mão dupla ou multidirecionais oferece uma solução potencial. Dos modelos radicais de democracia direta a sistemas representativos mais delgados e transparentes, as propriedades interativas da internet poderiam levar a um novo nível de prestação de contas dos governantes e a um novo nível de diálogo público.
VII. Oportunidade para vozes minoritárias ou excluídas. Por fim, características próprias da internet a convertem num ambiente de comunicação ideal para vozes que não costumam ser ouvidas no madrigal considerado socialmente relevante. Algumas dessas vozes estão fora do concerto porque pertencem a grupos, classes, povos etc. que são socialmente postos à margem dos fluxos predominantes de comunicação. Outras são atribuídas a grupos por natureza arredios à participação política em suas formas mais tradicionais.
O último caso é aquele dos jovens, por exemplo. Dado o seu entusiasmo pela internet, onde ainda constituem o público predominante, têm eles agora as melhores oportunidades de intervenção no campo político desde que as últimas gerações abandonaram as manifestações de rua e o hiper-engajamento juvenil em organizações da sociedade civil. O primeiro caso é aquele dos alternativos, dos marginalizados, dos contra-públicos (Downey e Fenton, 2003). Desde a cause célèbre do ativismo digital representado pelo episódio dos zapatistas em 1994, capazes de romper, por meio da internet, o isolamento físico, político e mediático a que foram confinados, a rede vem sendo vista como o paraíso dos meios alternativos ou radicais de comunicação política.
Os exemplos se multiplicam, bem como a lista das vantagens da internet para a intervenção política de grupos alternativos e marginalizados. É inegável o valor e o sentido da internet para a sociedade civil organizada, mas também para as mobilizações esporádicas e as intervenções pontuais que mais correspondem aos modelos de esfera civil não-orgânica que, ao meu ver, predomina nesses dias. De um lado temos as ONGs e os grandes movimentos multinacionais motivados e orientados por causas ambientais, por exemplo, que correspondem mais ou menos ao primeiro modelo, enquanto de outro
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temos as smart mobs, as carta-correntes de causas e protestos (Albuquerque e Sá, 2001), a doação anônima de fundos, o engajamento individualista por meio dos blogs, tudo isso que constitui um modelo de militância confortável e conveniente, mas nem por isso desprovida de efeito e sentido. Além disso, direita e esquerda, grupos democráticos e grupos anti-democráticos, todos têm o seu espaço de manifestação na rede. Grupos que não detêm a chance, por uma razão ou outra, de se fazer presente na esfera de visibilidade pública predominante, encontram na internet a oportunidade de dar o seu recado. “A internet lhes oferece, então, um meio não apenas de comunicar com seus seguidores, como também o potencial para ir além do «gueto radical» tanto direta (sem intermediários) quanto indiretamente, mediante influência sobre os meios de massa” (Downey e Fenton 2003, p.190).
4. A perspectiva dos críticos
Não resta dúvida, portanto, de que a internet pode fazer muito pela participação política. Enquanto durou a fase de entusiasmo no estudo sobre o impacto político da internet, o discurso poderia parar aqui. Agora, entretanto, é crescente a literatura que insiste em apresentar um conjunto de restrições e déficits, próprios da internet, no que tange à sua contribuição às democracia modernas. Essa nova literatura tem vários estratos e vários níveis de radicalismo, pois pode envolver desde publicações dotadas de um viés anti- utópico, neoludita e tecnofóbico até as posições céticas e realistas, desde as posições que incluem a internet em teorias da conspiração - em cujo centro estaria o capitalismo avançado e a sua ideologia, para uns, ou simplesmente o mal moral, para outros – até aqueles que consideram-na um meio neutro, com um enorme potencial democrático mas que em geral não tem entregue o que promete. Vale notar que grande parte da crítica à internet não se dirige diretamente à sua arquitetura técnica, nem à rede como fato social, mas tem como endereço certo um sistema de representações empolgadas sobre a internet, que elevou à última potência as suas características positivas sem se importar em oferecer apoios concretos às suas assunções. Em suma, o adversário em geral é menos a internet e mais a retórica sobre a internet e os imaginários ciberentusiasmados que prosperam na academia e no jornalismo.
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I. Informação política qualificada? Começamos com uma das desconfianças com maior potencial crítico sobre as qualidades democráticas da internet. Como esta é uma dimensão particularmente delicada da democracia moderna, já que a qualidade da participação política depende da qualidade e extensão da informação política disponível, o modo como esta questão se resolve é decisivo para um juízo geral sobre a capacidade que a internet teria de melhorar a democracia.
Não há dúvida sobre a quantidade da informação disponível pela internet nem há dúvida sobre o fato de ela ser potencialmente variada em origem e natureza. Aqui o problema, todavia, não é de possibilidade, mas de realidade. Que tipo de informação política temos hoje na rede? Antes de tudo, a informação de atualidade aí inserida pelas indústrias da informação, que, entrementes, transferiram também para a internet a sua oferta ao mercado de notícias. Esta padece daqueles limites que vêm sendo apontados desde os anos oitenta na literatura sobre jornalismo e democracia. Depois, temos informação produzida por instituições e organismos da sociedade civil, em geral qualificada, em geral composta por dados e análises de fatos e circunstâncias políticas, séria e consistente, mas naturalmente restrita ao interesse, viés e foco da instituição. Temos ainda informação produzida por agentes do campo político, em geral peças da política de imagem, intervenções que funcionam como lances na tentativa de imposição da imagem pública predominante do grupo político e dos seus adversários. Um tipo de informação que, por isso mesmo, é de baixa qualidade para uma formação adequada da opinião pública. Assim, a maior parte da informação política tem como fonte indivíduos privados com interesse político.
O problema relativo a este tipo de informação diz respeito a seleção, credibilidade, relevância e confiabilidade. Como pode o cidadão comum distinguir num volume absurdo de informação política entre aquela confiável, veraz e relevante e aquela errônea, distorcida e falsa? A elite, mesmo aquela pertencente à esfera civil, está aparelhada para operar, sem grandes problemas, esta distinção, mas é justamente a elite quem dela não precisaria, em princípio, porque possui outras fontes e recursos para formar o próprio quadro de conhecimento sobre a política.
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Por fim, o Estado é um provedor de informação política. Sobre os estados repousavam muitas das expectativas sobre o potencial de transparência da rede, pois se esperava que processos, arquivos e bancos de dados relativos às decisões que afetam a coisa pública fossem abertos ao olhar público através da rede. Ora, o fato é que os estados são ainda quase completamente parcimônia informativa e reserva de informação. A sua comunicação on-line com o público é ainda majoritariamente a produção de materiais destinados a produzir, unidirecionalmente, opinião pública favorável ou, no melhor dos casos, a prestação de informações básicas sobre o funcionamento do Estado.
Assim, apesar de dispor de uma arquitetura que favorece a existência de informação política qualificada e extensa, as sociedades contemporâneas não parecem ser capazes ainda de empregá-la de forma a assegurar uma coisa e outra. A informação política qualificada predominante continua sendo a dos meios de massa, agora também em formato Web e a informação política mais extensamente disponível é, em geral, de pouca serventia para o público, pois representa normalmente uma massa disforme de dados, desprovida, ademais, de marcadores de credibilidade. E o Estado se fecha ainda em reserva, silêncio e segredo, protegendo-se do olhar público, como sempre o fez.
Este diagnóstico, obviamente, não fecha a questão, apenas substitui uma insensata laudatio às maravilhas da informação política on-line por uma tarefa política, se queremos realmente explorar a alternativa da internet como instrumento de extensão das oportunidades políticas e não acreditamos que a democracia desça gratuita e espontaneamente do céu.
Se a qualidade de uma democracia informada depende da qualidade da informação disponível, fontes devem ser persuadidas a colocarem tanta informação política relevante quanto possível no domínio público. Isso pode certamente ser promovido por intervenção do governo – seja por meio de instrumentos legislativos ou da vontade ministerial – mas é difícil de ver como a existência de uma superhighway por si só pode diminuir a crescente tendência das fontes do governo, das corporações ou dos grupos de pressão de liberar apenas informação seletiva e distorcida (Barnett 1997, p. 209).
II. Desigualdade de acesso. Outro dos charmes da internet tem sido alvo de inexorável crítica, na forma da desconfiança sobre a capacidade que a rede teria de aumentar o quociente de isonomia política dentre os cidadãos. Há, também, aqui vários aspectos em jogo.
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O primeiro aspecto diz respeito ao conceito-chave «inclusão», decisivo em qualquer modelo de democracia (Dean, 2003). Uma autêntica experiência de democracia, acredita-se, depende basicamente de uma paridade fundamental dentre os cidadãos; paridade que deve ser superior e primária em face de todas as concretas disparidades que sobre ela se coloquem posteriormente. Daí a busca pela igualdade de oportunidades e pela equanimidade de meios e recursos, fenômenos que impõem naturalmente a busca da inclusão de todos os cidadãos na situação onde oportunidades, meios e recursos estão disponíveis para a ação política. Ora, sabe-se que nenhuma sociedade, nem mesmo aquelas mais homogêneas, até agora verificou uma distribuição equânime de acesso às oportunidades digitais de participação. Por um lado, há uma correspondência positiva entre o grau de homogeneidade na distribuição de recursos e habilitações sociais e a velocidade com que a isonomia digital vem crescentemente se estabelecendo. Por outro lado, em sociedades profundamente desiguais do ponto de vista econômico e na posse de habilidade educacionais básicas, sem mencionar o que se refere mais especificamente à diferença de níveis de posse de capital cultural, as contrastantes desigualdades de oportunidades digitais parecem incorporar-se tranquilamente ao nosso repertório de desigualdades como novas árvores se incorporam, sem mais, à paisagem.
Por enquanto, o que se vê em geral é que a distribuição desigual de competências técnicas, de recursos financeiros e de habilidades educacionais se transforma numa nova desigualdade de oportunidades políticas, que ao invés de resolver as desigualdades anteriores, torna-as ainda mais graves quando o crescente aumento das oportunidades digitais de participação política termina por ficar fora do alcance de uma parcela considerável da população. Por isso mesmo alguns suspeitam que a estratificação social aumentaria com o incremento das oportunidades digitais, e o fosso que separa os ricos e os pobres em informação e em chances de participação acrescentaria ao patrimônio de uns mais um conjunto de vantagens que a outros não são dadas.
Em toda a parte há evidências de que o fosso que separa os ricos dos pobres em oportunidades de acesso à internet vem diminuindo, numa velocidade maior nos países altamente industrializados e com maior dificuldade nos outros países. De toda sorte, está evolução tenderá a se estabilizar nos limites das classes sociais, isto é, conduzirá no máximo a que os integrantes das classes altas e médias tenham um acesso homogêneo
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ao mundo digital, a prescindir de diferenças de sexo, status e idade, por exemplo. No extremo, integrará, através do serviço público, os membros das classes baixas que possuam capital cultural semelhante àquele das classes superiores. Tudo isso certamente não é pouco, mas simplesmente replicará o padrão de injustiça social já operando em todas as sociedades. Provavelmente chegaremos a igualar as diferenças entre classes estabelecidas por razões econômicas e culturais e as classes estabelecidas pelas oportunidades digitais. O que não passa de uma isonomia da injustiça.
III. Cultura política. Atualmente está em voga uma convocação realista dos defensores dos impactos positivos da internet sobre a participação política a refletir sobre a cultura política e as suas injunções sobre qualquer tipo de efeito político. Tome-se, por exemplo, a questão da informação política on-line. Mesmo que ela fosse abundante e qualificada, só se poderia pensar em efeitos da informação política on-line sobre práticas políticas se levássemos em conta a cultura política predominante . Neste caso, há de se considerar que à oferta de informação política deve corresponder a existência de um real e significativo interesse político na esfera civil. Há informação política disponível, mas há um interesse significativo do usuário da internet em informação política? Temos poucos indícios empíricos de haver suficiente vontade e interesse no jogo político, no processo político e no estado dos negócios públicos para superar o senso de apatia predominante na cultura política contemporânea. E é difícil imaginar que apenas a mudança do meio de informação e de envolvimento político possa alterar a cultura política predominante.
IV. Os meios de massa continuam predominando. Esperava-se que a internet modificasse o panorama da comunicação política, superando os déficits democráticos da comunicação de massa e, naturalmente, a própria influência destes como controladores da esfera de visibilidade pública, daí a frustração evidente quando se constata que até agora os meios de massa são os fornecedores prioritários de informação política relevante (Coombs e Curtbirth, 1998) e que não há qualquer indício de que tenham o seu lugar ameaçado pela internet.
De fato, até agora não há qualquer evidência sustentável de que os meios de massa possam perder o seu lugar de controle da esfera de visibilidade pública. A internet,
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nesse caso, não lhes representou uma ameaça, mas uma oportunidade, pois crescentemente a indústria da informação simplesmente se concede uma espécie de sósia digital. A clonagem digital dos mais importantes meios de massa já é extremamente extensa no que diz respeito ao jornalismo impresso e é progressiva no que tange ao jornalismo de televisão e ao radiojornarlismo. Não há porque se imaginar que este movimento regrida ou mesmo se estabilize. Com isso, a internet não apenas não diminuiu o impacto dos meios de massa como, ao contrário, acrescentou-lhe um outro público consumidor e uma outra zona de influência. Certamente as versões on-line de um jornal ou uma televisão tendem a adquirir características da rede como o código hipertextual, a interatividade e as suas peculiaridades de arquivo (Dahlgren, 2001, p. 46). Por outro lado, essas versões on-line trazem à internet a lógica dos meios de massa ordinários quando replicam o fluxo unidirecional de comunicação (da indústria para o público), considerado em geral um vetor pouco democrático.
Dado que o Estado não se tornou um grande fornecedor de informação política on-line qualificada, como se esperava, e dado que a grande expansão verificada recentemente na internet pública obedeceu principalmente a critérios comerciais – inclusive a critérios e interesses das indústrias da informação, da cultura e do entretenimento – a internet aumentou em muito pouco a sua influência alternativa (aos outros meios de massa) sobre grandes extratos de público. O seu poder como fonte alternativa, capaz de revitalizar o processo democrático, manteve-se, então, pouco significativo e a sua presença demonstrou-se ainda muito pouco construtiva de uma alteração no panorama político (Wilhelm, 2000). A comunicação política com capacidade de atingir públicos de massa e produzir efeito sobre o domínio público e sobre a esfera política continua sendo aquela produzida e distribuída pelos meios de massa, com todos os limites que isso, em princípio, comportaria.
Esta, porém, pode ser em grande parte uma falsa questão. Talvez tenha chegado o momento de pelo menos se desafiar a tese de que os meios de massa se tornaram intrinsecamente antidemocráticos. Há certamente ainda muito espaço para a deliberação pública através dos meios de comunicação e estes são ainda os provedores principais dos estoques disponíveis de informação política atualizada, objetiva e crítica. De perto, a comunicação de massa, releva um perfil muito mais complicado na sua relação com a
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democracia e a política do que a retórica hiper-crítica dos anos 90 permite supor (este argumento se encontra desenvolvido com maior detalhe em Gomes, 2004).
V. O sistema político continua fechado. Uma outra objeção aos efeitos positivos da internet para a participação política apóia-se nas evidências relativas ao funcionamento do sistema político. Provavelmente esta classe de objeções faz sentido apenas porque uma certa retórica democrática da internet, na sua fé de que o meio constitui ao mesmo o instrumento de comunicação e o seu conteúdo, prestou pouca atenção à cultura e ao sistema políticos. Superada esta literatura, descobre-se o óbvio, a saber, que a mudança do ambiente da comunicação não reconfigura automaticamente o ambiente político nem as convicções que o acompanham. Assim, novamente nos encontramos novamente diante de uma frustração que só se explica pelo irrealismo da expectativa anterior: um meio de comunicação, per se, não basta para modificar um sistema político.
Vejamos, por exemplo, o caso dos partidos políticos, formidável maquinaria devotada ao funcionamento da política institucional. Resistiu ao contraste com outra gigantesca e socialmente influente maquinaria, aquela da indústria e do campo da informação, adaptando-se onde houve necessidade, impondo-se como e quando pôde, aproveitando- se as brechas no sistema que lhe se contrapunha. Por que não haveria de resistir à internet, que é muito mais flexível, ainda em formação e maleável? Ora, os partidos políticos adaptam-se com velocidade à época e à voga da internet, mas, pelo menos por enquanto, substancialmente para dela servir-se instrumentalmente para fazer o que sempre fizeram: propaganda, política de imagem, condução da opinião pública. Aliás, como corretamente destaca Bucy e Gregson (1997, p. 358), “dada a tendência dos partidos tradicionais a normalizar a atividade política, esperanças de uma radical transformação da política, mesmo no ciberespaço, presumivelmente não se realizarão”. Os partidos são uma máquina para a normalização, i. e., um aparelho de assimilação, de enfraquecimento de alternativas ousadas, de manutenção do seu sistema de vida, de forma que as forças que defendem a internet como alternativa teriam que representar um contra-poder muito mais forte do que atualmente representam para ter alguma chance contra eles.
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VI. Liberdade e controle. No momento da mais inflamada retórica emancipatória da internet, a rede era entendida como uma reserva ambiental protegida contra qualquer injunção de controle e filtro e dedicada a cultivar a plena liberdade de expressão. Liberdade que, naturalmente, deveria ser considerada automaticamente como uma virtude democrática. O modelo de democracia liberal-individualista conhecido como libertarianismo encontrava na forma do ciberlibertarianismo a sua ponta-de-lança.
Rapidamente se descobriu, entretanto, que a equação segundo a qual a liberdade sempre está do lado da democracia e o controle do lado da tirania é só um artifício retórico do liberalismo na sua forma mais extremada. Há informação má, perigosa, criminosa, falsa, ofensiva à dignidade humana, injuriosa e anti-democrática e defender o seu direito de existir não é o mesmo que lutar por direitos civis no ciberespaço, como querem os libertarianistas, mas engajar-se na proteção do direito ao hate speech, ao racismo publicado, à discriminação de minorias (Gomes, 2002). E se na internet de fato floresce um espaço da liberdade de expressão e de experiência democrática, ela igualmente se transformou no paraíso dos conservadores, da ultra-direita, dos racistas e dos xenófobos, um refúgio que, aliás, tem-lhes sido mais seguro e próspero do que o mundo off-line.
No rol dos paradoxos que comprometem a performance democrática da internet está, por exemplo, o anonimato. Antes, não se via na possibilidade de participar de debates ou produzir informação anonimamente nada além de vantagens para a democracia. Da perspectiva do debate, por exemplo, o anonimato representaria efetivamente uma vantagem porque, como diz Jensen, “o status, o trabalho e a educação do debatedor perderiam importância e a qualidade dos argumentos se tornaria a questão-chave”. Hoje, começam a despontar os aspectos negativos implicados no anonimato, porque se sabe que este “pode levar à irresponsabilidade, ao hate speech e ao declínio de uma cultura de debate” (Jensen 2003, p. 358).
VII. O panótico e a ciber-ameaça. O charme libertário da internet está definitivamente em crise. À retórica entusiasmada que a considerava uma espécie de maravilha
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democrática parece se contrapor agora uma retórica paranóica na qual o universo digital se converte em instrumento do mal. E há hipérboles de um lado e do outro.
Primeiro, claro, o universo digital reforçou imensamente a fantasia de um big brother eletrônico, isto é, um sistema de espionagem high-tech controlada por um centro qualquer de poder. Nas palavras de Hubertus Buchstein (1997, p. 250),
A mudança do dia a dia político na rede irá aumentar a capacidade de controle de agências do governo e de companhias capitalistas. Dado o fato de que praticamente cada movimento singular na rede deixa rastros digitais que se podem seguir, as novas tecnologias da informação e da comunicação permitem a um pequeno número de pessoas, do governo e de agências corporativas, por exemplo, monitorar e praticamente controlar um enorme número de pessoas.
Ademais, a experiência americana do 11 de setembro e a descoberta do emprego da internet pelo terrorismo confundiu alguns parâmetros de julgamento e pelo menos a retórica popular está indecisa sobre se a internet, que além disso já vem sendo associada à pedofilia, está para o bem ou para o mal. A codificação por criptografia, antes considerado um instrumento para proteger a comunicação entre privados da injunção dos controladores on-line, agora virou paradoxalmente a razão de mais uma inquietação, também em nome de valores democráticos.
Agora se teme que as novas técnicas de criptografização permita crime organizado, terroristas, traficantes de drogas e espiões em escala internacional o uso da rede para comunicações não-controláveis. Esta possibilidade levou à formação de uma coalizão de críticos da internet que inclui desde feministas querendo banir materiais sexistas, até a polícia e agências do governo temendo a comunicação criptografada por bandos internacionais de terroristas ou espiões, até companhias privadas desejosas de assegurar os copyrights, até tipos de conservadores dos valores familiares tentando proteger a moral social (Buchstein 1997, p. 252).
Na verdade, o que está em crise é uma concepção unidimensional da internet, que nela divisava apenas um instrumento para o progresso e para a democracia. Aparentemente, também aqui o que pode ser usado para o bem pode igualmente o ser empregado para o mal. E a internet, seus aparatos, sistemas e agentes tanto podem servir à democracia quanto ao seu contrário.
5. Para concluir
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O que dizer de tudo isso? Recursos tecnológicos não podem frustrar nem realizar promessas de efeitos sociais. Recursos tecnológicos são instrumentos à disposição de agentes sociais, estes sim com capacidade de fazer promessas ou de frustrar esperanças. A internet não frustrou expectativas de participação política porque tampouco poderia formular promessas de transformação da democracia. É um ambiente, um meio que, como ainda é claro para todos, está pleno de possibilidades, desde que as sociedades consigam dela retirar tudo o que de vantajoso à democracia pode oferecer (Hamlett, 2003). E aparentemente a sociedade civil e o Estado não têm ainda conseguido explorar plenamente as possibilidades favoráveis à democracia que a internet contém.
Há, porém, algumas deficiências de argumento que provavelmente torna mais complicada a compreensão do potencial democrático da internet. Primeiro, a contraposição elementar e seca entre internet e meios tradicionais de comunicação. O ambiente de comunicação que a internet constitui não se justapõe, mas provavelmente chegará a incluir praticamente as estruturas, princípios e funções das indústrias da cultura, do entretenimento e da informação. Muito provavelmente teremos uma internet corporativa, industrial, ainda maior e mais intensa, convivendo com uma internet pública e privada, em combinações as mais variadas, com efeitos políticos ainda a serem determinados. Provavelmente, a contraposição nítida entre a internet livre e a serviço da liberdade e dos interesses públicos e particulares, de um lado, e os velhos meios de massa controladores e a serviço dos interesses de mercado, do outro, perderá rapidamente sentido, devendo ser substituída por uma tipologia mais complexa e flexível.
Ademais, há um segundo argumento que não nos leva muito longe na avaliação da potencialidade democrática da sociedade contemporânea. O surgimento da internet no seu formato Web acontece quase contemporaneamente ao estabelecimento de uma inflexão extremamente desencantada e crítica sobre as possibilidades democráticas dos meios de massa. Talvez por isso mesmo ela tenha parecido naquele momento como o modelo das nossas esperanças democráticas. Estabeleceu-se uma simetria com o sinal invertido: quanto mais intensamente alguns falavam contra os meios de massa já estabelecidos tanto mais intensamente alguns falavam em favor do novo meio emergente. E facilmente os discursos entregaram-se a hipérboles nos dois sentidos, para falar mal da televisão e dos jornais de massa, de um lado, e para falar bem da internet e
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seus dispositivos, do outro. Os discursos, de algum modo, devem ter-se contaminado reciprocamente. Quinze anos depois, talvez se possa admitir o exagero retórico num discurso quanto noutro.
De forma que nem a internet poderia assegurar, a prescindir da cultura e do sistema políticos, tudo aquilo que dela se queria esperar em termos de incremento da participação democrática, nem os meios de massa significam apenas indigência e miséria democrática. Em ambos os casos, nada é definitivo e se dá automaticamente. Na verdade, o verdadeiro é provavelmente o contrário disso: de um lado é preciso manobrar socialmente a internet para que as suas possibilidades se transformem em oportunidades democráticas , de outro lado, há ainda espaço para manobra no que tange ao rádio, jornais e televisão no sentido de que eles cumpram um importante papel para uma democracia centrada na cidadania ativa. Seria estúpido imaginar que a esfera civil pudesse prescindir, na sua tentativa de aumentar a sua capacidade de influenciar a decisão política, do emprego dos meios de comunicação de massa - que, ainda controlam a esfera de visibilidade pública da política - supondo que a internet sozinha teria a capacidade de lhe devolver as oportunidades de participação política de que necessita. Tanto a internet quanto os meios tradicionais de massa devem ser explorados, isso sim, no sentido de que se dobrem ao interesse público. Como isso pode ser feito, entretanto, já é uma outra história.
Como corretamente apontou Peter Dahlgren, “a questão hoje não é tanto como a internet vai mudar a vida política, mas, sobretudo, o que pode motivar mais pessoas a ver-se como cidadãos de uma democracia, a envolver-se na política e – para aqueles que têm acesso – a empregar as possibilidades que a rede ainda oferece. Algumas respostas deverão ser encontradas na rede mesma, mas a maioria reside nas nossas circunstâncias sociais” (2001, p. 53). É preciso, então, que se saia o mais rapidamente possível da retórica do diagnóstico (positivo ou negativo) para uma perspectiva de responsabilidade e tarefa.
Notas
(1) Há uma literatura sobre comunicação e política bastante volumosa com forte ênfase na demonstração da deficiência circunstancial e estrutural da comunicação de massa no
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que tange à qualificação da cidadania, dentre as quais destacam-se Patterson, 1994; Blumler e Gurevitch, 1995; Entman, 1989; Yengar e Kinder, 1987; Postman, 1985;, Jamieson, 1992 e Fallows, 1997.
(2) Stephen Coleman (1999: p. 17) ilustra, a meu ver, adequadamente esta situação: “The factor which determines whether ICTs serve as democratizing force is the political culture in which they develop. Clearly, a public which opted (by autonomous choice rather than market imposition) to use the vast expansion of digital television channels to become more intimately involved in game shows and tele-shopping rather than empowering themselves in relation to government would be either complacently indifferent or happy with the delivery of government or both. There is no reason to force people to be informed, as long as they are sufficiently informed to know what they’re missing”.
(3) Neste sentido, estou disposto a concordar com Kirsi Kallio e Jyrki Käkönen quando falam que o problema aqui é de estrutura e de intervenção no nível estrutural (2003, p. 3). “To our understanding the problem could be that both politics and democracy do not anymore have a real meaning in current political structures and therefore people are loosing their interest in politics. In case this is a justified conclusion e-democracy fails to increase democracy. It only creates an illusion of democratic participation. In case the problem is more structural than just lack of participation the whole question about e- democracy has to be connected to de- and re-construction of social and political structures”.
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